Os instantes iniciais de A
Vida Invisível revelam duas personagens se embrenhando em uma mata úmida da
cidade do Rio de Janeiro. Enquanto uma chama pela outra subindo com dificuldade
os barrancos de barro e mato, uma imagem anterior as mostrava juntas observando
com melancolia o horizonte do mar. O breve prólogo incute a sensação de distanciamento
entre Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler),
antes irmãs inseparáveis, agora perdidas clamando uma pelo nome da outra, não
muito longe no espaço, mas incapazes de se enxergarem diante de uma densa
imensidão sufocante. Todo filme é um reflexo de seu tempo. Da mesma forma, uma
obra cinematográfica tem como uma de suas principais ferramentas usar o poder
de síntese de uma imagem para comentar um tema maior. Se há algo que tem o
poder de representar a essência deste novo longa de Karim Ainouz (Madame
Satã, O Céu de Suely, Praia do Futuro) é sua abertura, simbólica nos seus elementos
visuais e poderosa como introdução da história das irmãs Gusmão.
Antes de termos um vislumbre de
sua separação, somos apresentados a uma típica família de classe média da década
de 1950. Eurídice e Guida são filhas de um casal português que almeja o lugar
que acreditam ser cativo: o de bem-sucedidos e bem encaminhados quanto ao
futuro financeiro e social que lhes espera. Futuro este que repousa implacavelmente
sob os ombros das filhas, jovens bonitas e aparentemente recatadas (como manda
o manual), prontas para atender aos anseios da sociedade. Acontece que a pouca
idade traz o mesmo independente da época e Guida impulsivamente foge de casa na
tentativa de se casar com o namorado secreto e se mudar para a Europa. Pouco
tempo depois, retorna para casa, grávida, e com o breve relacionamento
terminado.
Enquanto isso, Eurídice, pianista
talentosa, almeja estudar em um conservatório em Viena, mas acaba sendo obrigada
a permanecer no Rio após o casamento com Antenor (Gregório Duvivier).
Se Guida encontra as portas de sua própria casa fechadas ao voltar como uma
futura mãe solteira, a irmã vai sendo aos poucos moldada para se tornar uma
dona de casa em uma relação tipicamente marcada pelas aparências e internamente
aprisionada no papel de mulher submissa. O marido, embora não seja retratado
como um glutão agressivo e caricato, é o homem que acredita que as aspirações da
esposa são meros caprichos diante de sua obrigação em se tornar mãe: “Você
já toca piano, o que mais você quer?” pergunta tolamente a uma Eurídice angustiada
por ver os anos passarem enquanto imaginava a vida na Áustria como uma musicista
de sucesso.
É dessa forma que a narrativa
acompanha a trajetória das irmãs, separadas por uma distância que acreditam ser
bem maior e praticamente intransponível. A única tentativa de comunicação é
feita por cartas que que Guida insistentemente escreve para irmã, enquanto essa
acredita que a outra está desaparecida. O conteúdo sonhador dessas cartas, inclusive,
vai marcando a passagem de um estado de esperança de reencontro para uma
inevitável constatação de que seus sonhos serão lentamente diluídos em um
universo absolutamente machista e implacável que sempre as obrigará a ceder,
seja em nome de um papel familiar rígido ou por eliminação, já que a coragem de
se distanciar das amarras sociais não incomumente era recompensada pela
alienação forçada – a mulher “atrevida” o bastante para largar tudo e seguir
com as próprias vontades estava fadada a não ser aceita.
O tom de épico familiar, adaptado
do romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (Martha Batalha)
no roteiro de Murilo Houser ganha uma abordagem que já vem reconhecidamente
sendo apontada como um melodrama. O próprio Karim Ainouz disse em pré-estreia (realizada
em Brasília há um mês) que tinha como desafio aliar essa abordagem numa forma
atrativa para uma versão cinematográfica. A verdade é que a obra tem mesmo características
mais dramaticamente acentuadas que a poderiam classificar como algo do gênero,
mas também Ainouz é experiente o bastante para misturar a crueza da realidade,
um ponto que a ótima montagem ressalta ao ir contrapondo o teor ingênuo das
cartas à situação opressora de cada uma das irmãs. Não à toa, as imagens que ficam
do casamento de Eurídice são as de a espera em um banheiro sujo enquanto o
noivo aguarda do lado de fora e a lua-de-mel cuja experiência é marcada pelo
sexo obrigatório e completamente desagradável para uma das partes (a feminina, claro),
e que assim permanece durante todas a relação.
Já Guida passa a viver à margem
da sociedade quando abre mão temporariamente do filho, já que não possui a
ajuda da família e só encontra esperança quando é acolhida por uma amizade
improvável. Além de ser mãe solteira, o que já é um agravante nesse universo,
ainda busca a sexualidade de forma “ativa” demais – ora, se não tinha como
objetivo agradar os homens, era melhor que fosse reprimida. Sexo casual definitivamente
só existia num vocabulário incriminador e se quem procurasse fosse uma mulher,
isso a obrigaria encarar seus desejos como uma espécie de perversão.
Toda essa repressão em relação às
duas protagonistas encontra também sua importância na excelente direção de
Karim Ainouz. O design de som é afiado e possui momentos inspirados na
narrativa que vão desde o som de uma tempestade que se aproxima quando uma
revelação importante está prestes a acontecer até as vozes de crianças brincando
ao fundo enquanto se discute a possibilidade de um aborto. Outro belo aspecto
do longa é o design de produção e o figurino, que, além de trabalharem com
exatidão na superfície, ressalta a ligação das irmãs através das cores – se num
momento inicial, Guida é marcada pelo azul, a cor tende a reaparecer sempre que
a obra quer mostrar sua presença (em forma de lembrança) nas cortinas do
apartamento de Eurídice, ou nas suas roupas; da mesma forma, o amarelo da outra
pontualmente surge em Guida quando, por exemplo, retorna de uma viagem de navio
em busca de notícias da irmã – essa lógica da paleta, inclusive, culmina num
belíssimo plano que junta as duas cores em uma janela quando uma personagem remói
lembranças de um passado distante.
Embora aqui ou ali o roteiro
tenda a recorrer a diálogos expositivos e a outros momentos não muito sutis, é preciso
reconhecer que o cineasta é capaz de outros que não só funcionam em um momento
dramático, como trazem um motivo temático constante ao longo da projeção. É o
caso, por exemplo, da maneira como a narrativa aborda o crescente esmagamento
do sonho de Eurídice de se tornar uma pianista profissional. Sempre que ela
aparece tentando se imergir em meio aos acordes de suas exibições, o ambiente
insististe em arrancá-la de volta realidade, seja pela família a lhe gritar
pelos corredores da casa, seja pelo marido que surge na penumbra lhe espiando e
prestes interrompê-la. Do outro lado, Guida aprende às duras penas que seu modo
de vida só lhe trará a opção de recorrer à sonoridade como forma de
sobrevivência, tanto por consequência da misoginia como de um Estado que subordinava
as escolhas da mulher às do marido (como viajar com o filho para fora do país,
por exemplo).
Com uma melancolia que vai
tomando conta dos fundamentos melodramáticos da narrativa, tornando-a dura,
tocante e emocionante, A Vida Invisível é um reconhecimento das mulheres
que enfrentaram obstáculos que hoje soam anacrônicos para boa parte da sociedade
(ou, ao menos, não da parte que não vê problema em exprimir os desejos de
voltar décadas atrás). Além de toda a importância temática e da excelência
técnica e narrativa, o filme ainda brinda o espectador com uma comovente participação
de Fernanda Montenegro, que necessita apenas de um tempinho para provar
porque é considerada uma das atrizes mais espetaculares que o nosso cinema já
teve (merecedora do Oscar de 1999, inclusive).
Para quem insiste em querer
separar o cinema de suas mensagens sociais e políticas, nada é mais forte do
que retornamos ao prólogo do longa. Após acompanhar a saga das irmãs Gusmão, é
impossível não sentir o aperto diante das duas irmãs separadas pela opressão do
ambiente que as cerca. Pode até ser que as Guidas e Eurídices de hoje enfrentem
outros desafios e em outras escalas, mas a mensagem ainda é surpreendentemente
atual.
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