A fórmula batida faz com que Aquaman resulte numa obra não muito diferente do que se tem visto nesses últimos anos.
Nos últimos anos, a Marvel se tornou a gigante no ramo dos
grandes blockbusters adaptados dos quadrinhos. Além de todo o mérito no
cuidadoso planejamento de seu universo cinematográfico – do qual ainda colherá
os frutos por muito tempo –, acostumou uma geração inteira a um formato
determinado. Já a rival DC brilhou
no cinema antes de começar a era moderna das adaptações de quadrinhos
(principalmente com Batman e Superman), mas foi meio trôpega ao
tentar desenvolver seu universo compartilhado. Amargou muitas críticas (algumas
delas injustas), mas conseguiu seus trunfos pelo caminho da Liga da Justiça. Mulher Maravilha (Patty Jenkins, 2017) foi um sucesso e outro membro do grupo que
agora chega apostando na história de origem (ao menos em parte) é Aquaman (James Wan, 2018), esperado lançamento de um personagem que começou
historicamente em segundo plano nas HQ´s
até ganhar importância com o tempo. Mas, e no cinema, será que ele cumpriu a tal
promessa imposta de “agora vai”?
A trama se passa após os eventos
de Liga da Justiça (Zack Syner, 2017) e acompanha Arthur Curry (Jason Momoa) em seu retorno à rotina simples com seu pai, o
faroleiro Tom Curry (Temuera Morrison). Criado pelo humano, o
herói se acostumou a viver na superfície, sendo eventualmente treinado por Vulko (Willem Dafoe) sob a promessa de leva-lo a se reencontrar com a mãe,
Atlanna (Nikole Kidman), desaparecida quando ele era apenas uma criança.
Enquanto isso, seu meio irmão, o rei Orm
(Patrick Wilson), planeja um ataque
aos humanos na superfície com a justificativa de puni-los pelo histórico de
agressão à vida marinha ao longo da história. Convencido pela princesa Mera (Amber Heard) de que há algo a mais por trás da invasão, o Aquaman será obrigado a enfrentar o
passado e lidar com o peso de sua linhagem para salvar os humanos e recolocar
no eixo o reinado da cidade perdida de Atlantis.
Respondendo logo à pergunta
anterior sobre essa ser a “salvação” da DC
nos cinemas: mais ou menos. Primeiramente, porque vejo como um exagero atribuir
o carimbo de fracasso aos títulos lançados pela Warner; segundo, boa parte do pé atrás surge de comparações
fanáticas entre os públicos das duas maiores editoras de hoje. Mas o que
interessa mesmo é saber: e como filme? Por um lado, infelizmente não se pode
dizer que o estúdio tentou algo realmente diferente aqui. A história do longa
segue o mesmo padrão formulaico da grande maioria dos exemplares do gênero e,
nesse sentido, não há porque atribuir uma suposta grandeza de redenção ao
projeto. De certa forma, o preço que se paga por essa empolgante época do
cinema de entretenimento é tornar o público mais exigente.
Para tirar logo o que não
funciona (há muitas qualidades sobre as quais falarei mais à frente), vamos
apontar logo que os culpados se encontram no irregular roteiro de David Leslie (Invocação do Mal 2) e Will
Beall (Caça aos Gangsteres). De
forma geral, não é possível dizer que há um texto muito inspirado por trás de
tudo. Além da jornada parecer a mesma genérica de sempre, não ajuda que grande
parte da narrativa seja tão previsível e dependente de constantes exposições
como acontece cada vez que uma informação importante sobre o mundo submerso
precisa ser inserida. Não é incomum que isso ocorra nesse tipo de adaptação,
ainda mais pela necessidade de incluir a maior parte do público que não tem
nenhuma referência sobre o material (sim, achar que um filme desse porte é “feito
para fã” é ignorar o básico de mercado); porém, o exagero enfraquece o poder da
jornada e tende a tornar passivo demais o espectador que só espera que essas
informações lhe sejam repassadas.
Para exemplificar, a coisa não
fica só no pontual, mas parte logo para soluções bastante preguiçosas. Basta
notar quantas vezes, por exemplo, os habitantes de Atlantis (ou de outro dos
reinos) despejam longas explicações sobre a lógica de seus próprios mundos, do tipo
“como você sabe, Atlantis era parte...
“ ou “você, personagem X, que...”
seguido de um resumo de suas próprias ações. E não dá para dizer que isso se
limita somente a esse núcleo. Em várias ocasiões, características internas importantes
deixam de ser trabalhadas na ação para serem expostas em conversas que quase
sempre ganham ares de monólogo de autoajuda – o que fica nítido sempre que um
diálogo tem como função resumir o conflito pelo qual passa o personagem, que é
outro recurso que empobrece a narrativa e afasta um desenvolvimento mais
cuidadoso.
O mesmo acontece na estrutura
concebida pelo roteiro, que tende a repetir bastante a lógica na construção de
suas cenas mais intensas (conte quantas vezes alguém estava em uma conversa
importante apenas para ser surpreendido por uma explosão), além de definitivamente
não ter como especialidade o timing do humor. Boa parte das piadas não
funcionam quando surgem de esforços muito óbvios, como aquelas que sempre
incluirão alguma gag relacionada ao
jeitão bruto de Jason Momoa. Não que
ele seja um problema. Carismático, o ator encontrou a abordagem perfeita para o
propósito do filme, misturando a força, o sarcasmo e o herói reprimido prestes
a ser revelado. Não há um grande arco que exija lá um substancial alcance dramático
para ele, mas o tom geral do longa permite que sua canastrice trabalhe de forma
positiva (assim como foi em Liga da
Justiça).
Ainda no elenco principal, Willem Dafoe dá a Vulkan a quantidade certa de honestidade e lealdade que o
personagem pede. O mesmo acontece com Patrick
Wilson, um ator sempre muito competente (e já familiarizado com o diretor),
que torna Orm um pouco mais tangível
na busca de um vilão que não caia no maniqueísmo. Infelizmente, o mesmo não
pode ser dito de Yahya Abdul, que
pouco consegue fazer com o roteiro que não dá nenhuma complexidade ao Arraia Negra, basicamente servindo com
um obstáculo unidimensional que aparece para atrapalhar o caminho do
protagonista e Mera – esta que o
mesmo roteiro acertou em não transformar na donzela em perigo, possibilitando a
Amber Heard explorar a fisicalidade
nas cenas de ação e não ficar muito atrás de seu parceiro em tela.
E chegamos no que Aquaman tem de melhor: seu diretor. James Wan ficou mais conhecido por ter
sido um dos responsáveis por dar um gás renovado ao terror mais tradicional (Jogos Mortais, Invocação do Mal,
Sobrenatural), mas mesmo nesse gênero, mostrou que é um cineasta possuidor
de grande inventividade com a câmera. Aqui não é diferente: a cada sequência de
ação, Wan e seu diretor fotografia, Don Burgess, exploram com afinco o
ambiente e a geografia das lutas e confrontos de maior escala. Câmera lenta sem
exagero, travellings circulares e
movimentos intrincados que colocam o espectador para participar da ação, e não
apenas vê-la passando rapidamente em sua frente. Se o roteiro puxa o material
para a repetição, ao menos o cineasta e seu montador, Kirk M. Morri, fazem o possível para mesclar os flashbacks com a trama
principal. Conseguindo não só manter o bom ritmo dos 144 minutos, o vai e vem
no tempo se liga organicamente através de transições elaboradas que usam o
ambiente como um raccord (transições que usam elementos gráficos, narrativos, sonoros, etc).
Fora a habilidade com a mise-en-scène, ele também demonstra ter
um senso estético apurado, não só na composição dos diferentes ambientes, mas
na sua utilização como complemento na ação. Ponto para o design de produção,
que não poupou nos detalhes de Atlantis e de outros reinos, além de
transformar a paleta de cores numa particular exibição vibrante de brilhos e
texturas. Como prova da preocupação em continuar deixando uma marca em seus
projetos, há ao menos 2 sequências excelentes que juntam a habilidade na
construção das cenas de ação (a perseguição nos telhados) com a estética, sendo o destaque uma
bela cena onde Arthur e Mera fazem um mergulho vertical envoltos
num pano de fundo que mais parece saído de uma pintura.
O aspecto heterogêneo de formas e cores ainda auxilia os próprios efeitos especiais, que mesmo com a poluição visual inevitável de grande
escala, não se perdem numa profusão caótica de imagens de computador (como
acontece no 3º ato de Batman vs Superman),
criando uma verdadeira ópera submarina que empolga sem se estender
desnecessariamente. Juntando todas qualidades técnicas do longa, fica mais
fácil entender também a melhor decisão de James
Wan como diretor, que é investir numa abordagem que flerta levemente com
uma galhofa e um tom mais despretensioso (nem sempre ser mais sombrio é
melhor). Isso pode ser percebido, por exemplo, na forma como o início do 1º ato
trata o encontro de Tom Curry com Atlanna numa pegada melodramática com
cara de drama épico. De certa forma, é uma maneira de folgar a linha que separa
a seriedade da desambição – ou se você preferir, deixar um filme da DC com cara de Marvel.
Para fechar nesse tom mais
descolado, a trilha sonora de Rupert
Gregson-Williams incorpora batidas eletrônicas e uma mistura de timbres
épicos que dão um ar de videoclipe/game aos menos às sequências de ação. Nos
momentos onde a comédia ou o dramalhão aparece, ela perde muito sutileza e basicamente
volta a pegar na mão do público (assim como os diálogos) como se este não
soubesse quando rir ou se emocionar.
A fórmula batida faz com que Aquaman resulte numa obra não muito
diferente do que se tem visto nesses últimos anos. Tem um diretor que costuma
se sair acima da média, mas será que isso hoje já é tanto assim um diferencial
depois de dezenas de adaptações e tentativas de experimentar sob a rigidez dos
estúdios? É competente e divertida, mas certamente não merecia o rótulo de
salvadora.