A ausência dos diálogos, mais
precisamente, não impediu a narrativa cinematográfica de florescer e ficar
marcada como um período onde a linguagem visual provou sua beleza e eficiência
antes que o público fosse convencido de que precisava ouvir as vozes e o
ambiente para sentir que a experiência fosse completa. Muito tempo passou e a
fala é parte integrante dos filmes que vemos hoje em dia. Já nos emocionamos com
belos discursos, diálogos profundos e textos recheados de perspicácia – a voz
que auxilia, completa e enriquece. Mas, certamente, isso não foi um entrave
para que seu uso caísse frequentemente na malfadada exposição desnecessária – a
que menospreza o público e revela a preguiça de um roteiro. Vivemos na era da
superinformação, dos grandes blockbusters e da tentativa de economizar quando
se trata de passar uma informação ao receptor, mesmo que isso custe a qualidade
e a elegância de uma obra.
Talvez o culpado por essa
introdução seja o terror/suspense que chega aos cinemas essa semana, Um Lugar Silencioso (A Quiet Place, EUA, 2018). Embora esteja
longe de ser mudo em sua concepção original, o filme comandado e co-estrelado
por John Krasinski (ou, nosso eterno
Jim, de The Office) se beneficia do silêncio como um dos seus principais
recursos narrativos, o que, mesmo em premissa, já é um certo respiro numa época
onde o barulho está cada vez mais alto nos cinemas (em todos os sentidos). Na
trama, Lee Abbott (Krasinski) e sua mulher Evelyn (Emily Blunt) vivem com seus filhos, Regan (Millicent Simmonds) e Marcus (Noah
Jupe), em um futuro não muito distante onde o planeta está tomado por
criaturas misteriosas que caçam através dos ruídos, o que faz com que a família
Abbott seja obrigada a sobreviver em sua fazenda aprendendo a se relacionar
numa rotina de silêncio.
Palavrinha poderosa, essa. Ao
optar por construir seu roteiro levando em conta a ideia, Bryan Woods e Scott Beck
– depois com a colaboração do próprio Krasinski – deixaram nas mãos do
ator/diretor a tarefa de conduzir sua narrativa com a obrigação de não contar
com diálogos durante a maior parte do tempo, mesmo que a comunicação acabe
sendo traduzida em legendas. Você pode até pensar: “mas então há pouca diferença real para um filme repleto de
diálogos...”, mas o caso é que, ainda assim, a utilização do recurso é
comedida e encontra equilíbrio numa frequência pontualmente necessária para que
nenhuma informação importante seja relevada (uma versão anterior do texto
continha somente uma linha de fala). O que se tem nas mãos é o objetivo de todo
bom exemplar do gênero: envolver o espectador pela ambientação do suspense, levá-lo
a se importar com o destino dos personagens e tornar os sustos justificáveis; aspectos alcançados por um trabalho competente e cuidadoso na relação dos elementos
técnicos com a trama.
Tudo acaba se resumindo naquilo
que o som representa em nossa conexão com a narrativa. Quando ele sempre está
lá, permanente, não costumamos prestar atenção em seus detalhes. Mas, quando
ele está ausente, sua ocasional intromissão ganha poder quando contrasta com o
silêncio angustiante. E basta uma sequência inicial simples e eficaz para que o
suspense se instale e entendamos que viver como os Abbott é, literalmente,
andar de fininho e sussurrar. Por consequência, esse silêncio força o
espectador a dobrar a atenção e se simpatizar com os personagens. Soma-se, ainda,
um vilão (vários deles) ameaçador, direto e com a audição bastante aguçada. A
trama não enrola e as pistas são plantadas de maneira clara com o objetivo de
realçar a ameaça de cada passo em falso ou cada descuido que resulta num vidro
quebrado ou uma reação inevitável de dor.
Conduzido com bastante segurança por John Krasinski, o
filme sabe trabalhar com esses elementos de maneira equilibrada, e mais, sabe
dar a eles a importância devida no tempo certo. Há os momentos mais tensos onde
tememos por cada deslize, mas há a saída natural de cada diálogo que vem como
uma recompensa – como é bem mostrado numa sequência onde pai e filho finalmente
podem trocar palavras ao lado de uma queda d´água, o que não só tem a intenção
óbvia de servir como um segmento de estabilidade da narrativa como revela, mais
uma vez com eficiência, as regras do universo onde ela se passa. Não só no
trabalho preciso com a câmera, que sabe usar a indução de algo estar “acontecendo” fora de quadro, a estrutura concebida pelo cineasta organiza as
dicas inseridas visualmente (um carro estacionado, um aparelho de audição e até
um prego em um lugar específico) como uma forma de manter o espectador à frente
dos personagens quando necessário e “no escuro” quando menos se espera, o que
torna a tensão presente durante todo o tempo, garantindo o sucesso da obra
dentro do que se espera. É verdade que o resultado final poderia ser um pouco
menos revelador, mantendo as ameaças mais escondidas, mas mesmo assim,
funciona, e funciona bem.
É claro que tudo isso seria bem
menos eficaz se não nos importássemos nem um pouco com o destino dos
personagens. Felizmente, o relacionamento entre eles vem do mesmo acerto em
relação ao som na construção do suspense. A dificuldade da comunicação fora da dinâmica como a conhecemos na realidade dá substância aos pequenos momentos de
ternura quando estes surgem como um alívio. É fácil sentir empatia por eles e
cada um tem seu momento, já que a própria natureza do silêncio intensifica o
que é demonstrado pelas expressões e pelos gestos pontuais. Assim, é preciso
bem pouco para que uma simples dança ao som de uma canção vinda de fones de
ouvido revele o carinho entre Lee e Evelyn (também fruto da química natural do
casal na vida real); fato que também permite que Emily Blunt tenha a mesma carga dramática em sua personagem, que,
inclusive, passa pelos segmentos mais angustiantes do longa.
Da mesma forma, é reconfortante
que os filhos do casal também despertem nosso interesse, sendo grande parte do
sucesso resultado da expressividade de Noah
Jupe e Millicent Simmonds (que é
deficiente auditiva na vida real), um fato que, geralmente, é ignorado em
filmes de terror, mas aqui faz parte integrante de nossa relação pessoal com a
trama. Mesmo que as aspirações dramáticas do longa não sejam dignas de um
estudo de personagem, o operante é bem feito o bastante para que o filme
complete suas funcionalidades e tenha os dois elementos principais já citados
em sintonia.
Partindo para o 3º ato, Um Lugar Silencioso tende ao exagero e
ao desgaste da fórmula, mas consegue contornar a repetição através de um ritmo
afiado, que une cada segmento ao próximo num equilíbrio entre o drama e o
terror. Apesar de algumas facilitações e conveniências que incomodam quando
confrontadas com questionamentos maiores, seus efeitos conjuntos compõe uma
ótima experiência de gênero. Fora isso, a obra ainda tem seus momentos
inspirados por algumas boas inventividades visuais (particularmente, a que
coloca um dos personagens em um esconderijo que lembra um caixão é uma das mais
interessantes) e questionamentos que vêm naturalmente (sem serem impostos por
diálogos) acerca do futuro da daquelas pessoas e, por consequência, da própria
raça humana. Como será possível se perpetuar na obrigação de um silêncio
constante? Já imaginou como seria criar um filho de 1 ou 2 anos de idade na
iminência de um ataque mortal a cada pequeno ruído? Apesar do filme não se
preocupar muito em deixar várias delas em aberto, essas reflexões surgem
orgânicas e suficientemente razoáveis como uma adição a um bom exemplar de
gênero.
Provando que é possível ainda
tirar um bom terror convencional a partir de uma manipulação narrativa que se
aprende lá com os pioneiros da sétima arte, Um Lugar Silencioso não inventa a roda, mas mostra muito bem que o
terror pode vir dos silêncios calculados tanto quanto dos sustos escancarados.
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