Se depender do Baba Yaga (uma das alcunhas do personagem na saga), nossos filmes de ação estão temporariamente salvos.
Talvez perdendo apenas para o
terror, o gênero de ação sempre sofreu muito nas mãos dos inúmeros produtos
formulaicos que invadem o mercado todos os anos. Quanto mais uma obra se
pretende a funcionar mais próxima de suas convenções originais, mais ela corre
o risco de se limitar a elas. É por isso que não é incomum vermos o público
sentido saudades daquele filme de ação “bom
mesmo, bem raiz, sabe?”. Vítimas de visões cada mais infladas e exageradas,
esses exemplares têm se rendido a derivações sem identidade e tendo sua
principal proposta, a ação, prejudicada pela inabilidade com a câmera. Tanto é
assim que basta um deles nos entregar uma boa sequência – significando aqui bem
dirigida, coreografada e montada – para todo mundo se sinta animado com o “renascimento”
do gênero.
E não podemos culpá-los. Nada é
mais empolgante do que presenciar uma catarse no nível mais elementar do
entretenimento e é justamente isso que o mais recente lançamento da trilogia
John Wick (John Wick 3: Parabellum)
faz. Se igualando a poucos “irmãos” de escola, como a franquia Missão Impossível e alguns exemplares
asiáticos, o longa nos transporta para aquela descarga de adrenalina primária
que tanto gostamos de dizer que, do fundo da nossa nostalgia, não existe mais. Pois
agora dá para afirmar com tranquilidade: se depender do Baba Yaga (uma das alcunhas do personagem na saga), nossos filmes
de ação estão temporariamente salvos.
A história de John começou da forma mais clichê
possível: um homem que procura vingança depois que o filho de um chefe de uma
organização criminosa comete o erro de roubar seu carro e matar o seu cachorro
– e sim, a frase que saiu dos fãs e foi parar na história, “isso tudo por causa de um cachorrinho!?”
é a forma econômica de justificar a jornada acima de explicações mais
elaboradas. Sabemos (como fizeram questão de explicar desnecessariamente no 1º
filme) que o filhote representa a última ligação com a esposa morta. Durante a
continuação – e agora com o 3º longa – a coisa começa a descambar para o
matador profissional que se vê obrigado a fugir da misteriosa organização que o
empregou.
Do ponto de vista estrutural, é
mérito dos criadores e roteiristas (Derek
Kolstad, Shay Hatten, Chris Collins e Marc Abrams) fazer com cada etapa que o protagonista é obrigado a
superar sirva como as fases de um videogame, onde seus inimigos vão se tornando
cada vez mais difíceis e preparados. Primeiro ele se vinga de um peão, depois
um antigo membro da Alta Cúpula tenta matá-lo (não consegue, claro) e, após
desrespeitar uma das mais importantes regras do jogo, tem a cabeça colocada a
prêmio pelo diretor do Hotel Continental, Winston
(Ian McShane), que dá a ele uma hora
de vantagem – mesmo ferido e cambaleando – em cima dos contratos abertos de 14
milhões de dólares pela recompensa.
Aliás, essa lógica de regras,
contatos e territórios neutros faz parte de outro mérito gigantesco da
produção: transformar o mundo meio absurdo de John Wick em um pretexto elegante que fundamenta as motivações e os
caminhos que cada novo personagem percorre. Dessa forma, a verossimilhança da
obra já tinha sido estabelecida antes, mas aqui é reforçada: há uma enorme
organização criminosa liderada por 12 assentos (a Alta Cúpula), cujos braços se
estendem a todos os lugares, sempre escondidos e praticamente onipresentes. As
telefonistas operando máquinas da década de 1950 continuam lá, assim como os
arquivos e contratos em papel, o câmbio próprio e os monitores antigos de tubo
de imagem (até faz sentido se considerarmos que esse anacronismo provavelmente
é o que impede que os segredos da organização sejam descobertos pela tecnologia
da internet atual). Tudo em um charme particular que torna a coisa ainda mais
divertida.
Aliado a essa construção de mundo
peculiar, a própria maneira como os personagens reagem às regras da organização
é responsável por dar o peso que ela necessita para funcionar na narrativa.
Quando, por exemplo, após ser perseguido por um poderoso rival, John desaba em frente às escadarias do
Continental, basta que ele coloque uma das mãos nos degraus para que ele esteja
em território proibido para matar ou ser morto. Por mais vis que o os chefes da
máfia sejam, o respeito (ou medo) que têm da Alta Cúpula é o suficiente para
que essa lógica se mantenha – há até a função de uma espécie de oficial de
justiça (interpretada de forma divertida por Asia Kate Dillon), que é responsável por levar os termos da cúpula,
intimar e executar as penas de acordo com as contravenções de cada um.
Tudo isso pode parecer bobo, mas
é um bobo que encontra eficiência na simplicidade e no fato de não necessitar
muito de exposição para funcionar. É a narrativa trabalhando de forma econômica
para que o longa ofereça logo o que tem de melhor. Dirigido novamente por Chad Stahelski (que trouxe sua
experiência das artes marciais como instrutor de dublês na trilogia Matrix, entre outros), o filme é um
prato cheio de soberbas sequencias de ação. A princípio, pode parecer
repetitivo – já que aqui se resume a lutas corporais, tiroteios e algumas
perseguições de moto –, mas isso não impede que o cineasta dê uma aula de como
conduzir com maestria essas sequências. Dá para contar nos dedos de uma mão
quantos planos fechados ou cortes rápidos (trabalho excelente do montador Evan Schiff) há em todos os 131 minutos.
É possível não só enxergar tudo como apreciar cada momento graças aos planos
longos e às coreografias brutais, que fazem questão de não poupar o público da
violência.
Não há como não se lembrar,
aliás, das lições que Jackie Chan
tentou trazer para Hollywood quando foi fazer seus filmes lá: deixe que o
espectador veja a ação e a reação em um mesmo plano, assim não é preciso que um
corte disfarce a inabilidade do diretor e o despreparo do elenco. Isso tudo é o
contrário aqui, já que, além de contar com a precisão de Stahelski, o longa traz
um Keanu Reeves ainda mais dedicado
e preparado fisicamente para o papel. É notório que o ator tem evidentes
limitações dramáticas, mas quando escalado para papeis certos como esse, a
parcimônia nos diálogos (conte quantas vezes ele fala mais de 3 ou 4 sentenças)
permite que seu carisma transponha para a tela. Em resumo: fala pouco, mas bate
muito e ainda é capaz de apresentar vulnerabilidade.
Fora todos os elogios em relação
as coreografias e à direção, é preciso reconhecer o bom olhar estético da obra.
Fotografado por Dan Lausten (A Forma da Água), o filtro de luz
azulado e tons frios que tomava conta da melancolia da rotina do protagonista
passa a ser substituído por ambientes amarelados e vermelhos, geralmente
trabalhados em conjunto com um jogo de sombras que contribui para um clima
urbano quase místico. Não só servindo de forma surpreendente para a narrativa
em um longa desse tipo, o visual é parte da beleza estética por si só – por
isso, mesmo sendo normal que se questione qual seria a real funcionalidade dos
fundos futurísticos, brilhosos e as paredes, escadarias e ornamentos de vidro
espalhados pelo Continental, o que importa é que eles elementos adicionam força
para o propósito do filme. John Wick 3
diz o tempo todo: eu sei o que sou e vou te entreter assim mesmo.
Mesmo tendo completa noção de seu
mundo e suas características, o longa talvez só peque por eventuais exageros
(pois é, mesmo aqui). A onipresença quase sobrenatural da organização as vezes
ultrapassa um pouco a própria verossimilhança interna da narrativa (quando
convém, ora estão em todos os lugares, ora, não) e há um ou outro momento onde
o humor perde o timing e a piada
passa de hora. Mesmo assim, essas são exceções, já que a inserção de alívios
cômicos trabalha de forma precisa sem jamais quebrar e tensão ou ritmo de uma
sequência, além de servir como mais um lembrete para o público de que a dose
certa de galhofa é benéfica para o bem de todos.
É por isso que não hesito em
afirmar que uma obra como essa é tão Cinema (maiúsculo mesmo) quanto qualquer
outra calcada em um grande drama existencial ou uma ficção científica repleta
de grandes ideias. Deixar de apreciar filmes que “só servem para passar o
tempo” é reduzir a linguagem cinematográfica apenas ao tema, e não á sua forma,
tão passível de admiração quanto.
Se continuar bom assim, que
venham mais Ethan Hunts e John Wicks por aí.