É mais do que oficial: os novos
heróis do cinema são os nerds e o
mundo que vale a pena ser salvo é o da cultura pop.
Ao criarem obras icônicas na
década de 1980, os cineastas recém influenciados pela nova onda do escapismo
pós-nascimento do blockbuster talvez
não imaginassem que grande parte delas seriam veneradas, 30 anos depois, como
uma espécie de época mágica, a dos mitos televisivos e personagens que ajudaram
a figura estereotipada do nerd se
tornar uma imagem almejada. Hoje em dia, é legal ser uma enciclopédia de quadrinhos, séries
e filmes, e quanto mais se lembrarem disso, mais se mantém vivos no imaginário
cultural. Os canais no YouTube sobre o tema, os diversos sites dedicados ao
universo e, principalmente, seu resgate pelo cinema mainstream transformaram
essa coisa de “falar de cultura pop” em um requisito quase necessário.
E um dos nomes que foram cruciais
para essa nostalgia – que muitos nem viveram – é Steven Spielberg. Os projetos que assinou como diretor e produtor
são, provavelmente, os detentores top de linha dos elementos que hoje são
replicados e homenageados por seus inúmeros “influenciados”. Com o uso dessa
magia oitentista em alta novamente, não é nenhuma surpresa ver mais um material
que bebe da fonte, só que agora comandado por um de seus pais. Dessa vez, a
dose é bem maior e uma espécie de resumo simbólico reunido em O Jogador Nº 1, adaptação do livro
homônimo escrito por Ernest Cline,
cujos mecanismos da trama são usados como uma desculpa (uma boa) para reunir
uma série de referências ao período sem nenhum receio de escancarar a
reverência do autor pelas produções retratadas.
O longa se passa num futuro onde
grande parte da população vive na pobreza após o esgotamento de importantes
fontes energéticas. Ao invés de reagirem na mesma realidade, eles se
acostumaram a passar boa parte de suas vidas em um jogo simulado dentro de um
gigantesco ambiente virtual, onde podem viver de maneira completamente
diferente através de seus avatares. Wade Watts/Parzival (Tye Sheridan) é um jovem que se acostumou com o OASIS – como é
conhecido o jogo – e passa a virar uma figura importante após encontrar umas
das três chaves escondidas plantadas por seu criador, James Halliday/Anorak (Mark Rylance), que dão o controle total
do OASIS a quem encontrá-las. Auxiliado por Samantha/Art3mis (Olivia Cooke), Wade parte pela busca do
prêmio final, tendo, ainda, que enfrentar a concorrência de uma empresa
especializada em recursos virtuais, a IOI (Innovative Online Industries),
comandada por Sorrento (Ben Mendelsohn).
O ambiente futurista guarda suas
relações com as distopias que nos acostumamos a ver no cinema, nas quais o
mundo está estagnado por alguma circunstância grandiosa que costuma
transformá-lo num cenário pessimista. Só que dessa vez, essa circunstância é a evolução da realidade virtual para uma espécie de matrix
consciente. Ao invés de estar ameaçada por governos totalitários, corporações
inescrupulosas ou epidemias, a humanidade encontrou sua inércia dentro de
universo online de multijogadores. E não é algo que parece tão distante assim se
considerarmos o modo como os jogos estão tendendo a se basear em ambientes cada
vez maiores e com maior capacidade de processamento. Extrapoladas na adaptação,
escrita pelo próprio Cline e por Zak
Penn, as relações virtuais de hoje são praticamente toda a vida social do
futuro de 2045, incluindo as amizades por pessoas que você nunca viu, batalhas de
heroísmo para dar um significado a uma existência marcada pela recessão e o
sucesso financeiro que só existe numa conta digital.
Sendo assim, o filme rapidamente
introduz um mundo de possibilidades cada vez mais atrativas diante de uma
realidade difícil de quem mora em conjuntos habitacionais que mais parecem
favelas constituídas de trailers e sobrados, mas tem um espaço – e tempo –
sagrado para se dedicar à conexão com o OASIS. Em uma montagem divertida, vemos
diversos núcleos de personagens interagindo com o virtual de maneira obviamente
mais entusiasmada do que na vida real. Se há tempo e dinheiro livres, é melhor
usá-los para aumentar o saldo e adquirir novos equipamentos para melhorar o
nível no jogo (alguma semelhança com nossa atualidade?). A diferença para essa
ficção, é que esse modo de vida constantemente ultrapassa o limite e afeta de
maneira mais profunda os participantes – para isso, basta observar a
importância que Samantha dá à relação do jogo com seu passado, algo que o
roteiro estende para possíveis questionamentos, embora não tenha tanta
competência em desenvolvê-los.
Mas, apesar de apenas ensaiar
maiores discussões filosóficas inerentes ao tema, é mesmo no fator
entretenimento que Spielberg mira seus esforços e o “pequeno” detalhe do
criador do OASIS ser aficionado por cultura popular dos anos 1980 é a
justificativa simples e eficiente para o fato de toda uma geração ser
igualmente influenciada pela época. Assim, o universo virtual concebido pela
equipe de produção e de efeitos visuais tem uma infinidade de possibilidades ao
trazer uma miscelânea de objetos e personagens icônicos como parte integrante
dos desafios para encontrar as chaves. Aí é que entra o fator nostalgia, sendo
a aposta mais óbvia para fisgar qualquer espectador pelas caçadas às
referências, que vão das mais óbvias até as que passam mais despercebidas, com
direito a um DeLorean pilotado pelo protagonista, um cubo com o nome de Zemeckis com uma função diretamente
relacionada trilogia De Volta Para o
Futuro, e personagens de filmes e jogos dos mais variados, como o King Kong
e o Tiranossauro Rex. Nisso, a narrativa não esconde que a todo momento clamará
por um “olha só, é um personagem do
Mortal Kombat” ou “não acredito que
se lembraram disso que eu assistia na TV”. Se as referências são ou não
gratuitas, é o que menos importa, já que é algo que faz parte da proposta do
filme.
Contanto ainda com o fato de que
as sequências de ação são quase todas no mundo virtual, o cineasta tem a desculpa
perfeita para esticar nossa suspensão de descrença e investir fundo no
espetáculo visual e no flerte com o absurdo cujas leis físicas só um jogo pode
proporcionar. É uma verdadeira “poluição visual” em um bom sentido, repleta dos
cenários mais variados e das situações mais megalomaníacas. São ambientes
distintos e habitados por avatares das mais diversas aparências, usadas, ainda,
de maneira integrante com a ação do filme. A diferença para a maioria dos
diretores é que Steven Spielberg é
amigo da câmera como poucos e não deixa que a intensidade se confunda com caos.
Além de algumas de suas marcas constantes estarem presentes – como os travellings que bailam pelo ambiente
revelando informações visuais importantes –, as perseguições e confrontos se
beneficiam pela liberdade temática e pela experiência do diretor no quesito.
Como resultado, o entretenimento é de qualidade e há, pelo menos, dois
segmentos espetaculares que chamarão a atenção – entre eles, um que envolve uma
homenagem a Stanley Kubrick que me
fez reagir em voz alta na sessão, num esmero técnico e inventivo digno de
aplausos.
Mesmo tratando o OASIS com o
absurdo que merece, a realidade fora do jogo também não parece lá muito
preocupada com uma abordagem mais séria e “adulta”, digamos. Desde as ruas
pichadas como os becos de cenários punk e caracterizações em figurinos e
cabelos saídas da época reverenciada, até uma fotografia que salienta o brilho
e uma luminosidade levemente fosca – características marcantes da parceria
duradoura com seu cinematógrafo Janusz
Kaminski –, os anos 80 estão sempre presentes, como se fosse o ponto
simbólico de onde partiu a distopia. O motivo de optar por essa abordagem é se
configurar um estilo que deixa passar um pouco mais o tom maniqueísta da trama,
pois tudo parece mais uma homenagem visual consciente. Os heróis são figuras
dignas – no máximo com um ou outro aspecto que os aprofunde –, a corporação é
retratada como um sistema malvado repleto de figuras caricaturais (Mendelsohn
não resiste com suas expressões de vilania) e a trama se baseia numa jornada clássica
que busca o objetivo de transformar o herói e testar seus valores perante o
mundo.
O que nos leva aos pontos
negativos de Jogador Nº 1 advindos do
questionamento: até que ponto você sairá satisfeito com o filme pela sua
história e seus personagens ou porquê se rendeu às referências que apelam para
sua nostalgia? Sim, elas são divertidas e até se justificam pelo excesso e por
serem parte da própria lógica estabelecida, mas fora isso, o fio central que
conduz a trama é esquecível e carece de um aprofundamento mais interessante. A
própria obra introduz a importância da discussão causada pelo efeito do OASIS na
sociedade, mas, posteriormente, a esquece durante boa parte do tempo apenas
para retomá-la de maneira apressada e com uma conclusão meio simplória. Além
disso, por mais que o diretor apele para a ligação emocional com os personagens
– auxiliado pela trilha do grande Alan
Silvestri –, nunca há o bastante para que eles realmente carreguem o peso
que a trama necessita. Apensar da longa duração (140 minutos) poucos deles têm
tempo de despertar nossa verdadeira empatia, o que acaba tornando a jornada
mais recompensadora pela ação e o ritmo ágil do que por outra coisa (não que
isso seja necessariamente ruim, mas torna o material um grande potencial não
alcançado).
Mesmo assim, a jornada é
visualmente intensa e não há nenhum buraco que corra o risco de deixar a
experiência entediante – o que hoje em dia é um elogio diante de tantas obras
de gênero descartáveis. Steven Spielberg
sabe o que faz na área onde sempre demonstrou domínio e talento. Falar em seu
nome para comandar uma ode à cultura pop não poderia resultar em uma obra
diferente de competente, no mínimo.
Parece que em termos dos blockbusters que ajudou a inventar (e
mesmo não sendo um de seus melhores), o homem ainda merece respeito.
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